COVID-19: O que está em jogo

Donato S. Ferrara
4 min readMar 17, 2020
Imagem de computador do novo coronavírus (fonte)

Vinte dias atrás, publiquei um texto aqui no Medium, “O vírus e nós”, em que refletia sobre as dificuldades que se aproximavam da sociedade brasileira com o registro do primeiro infectado pela cepa de coronavírus descoberta na província chinesa de Hubei.

Não sou uma Cassandra — nem me imagino como tendo vocação para fazer alertas que serão acolhidos por ouvidos moucos. Contudo e mesmo para minha surpresa, foi um texto que despertou bem pouco interesse. Era Quarta-Feira de Cinzas.

Mais uma vez, deixo claro: muito verossimilmente, o que vem por aí não é um apocalipse, mas uma grande crise. Receio que muitos não estejam preparados para ela.

Na última quarta-feira, 11/03, o Dr. Tedros A. Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, declarou que o surto de COVID-19 já havia alcançado o status de pandemia. As estatísticas daquele dia davam conta de mais 118 mil pessoas infectadas ao redor do mundo, com 4.291 mortes. No momento em que redijo este texto, as baixas chegam a 7.463 (aumento de 74%), dentre mais de 186 mil contaminados. A boa notícia: os plenamente restabelecidos já superam, hoje, os 80 mil, segundo a OMS.

O primeiro óbito no Brasil acaba de ser confirmado.

Ao que tudo indica, a letalidade da doença continua não se apresentando como alta: gira em torno de 3% dos atingidos. As vítimas fatais têm sido, como ninguém ignora, idosos e indivíduos com problemas de saúde pré-existentes. Racionalmente falando, não há motivo para pânico: para 8 em cada 10 casos, os sintomas são como os de uma gripe pouco severa. E uma porção considerável dos infectados não apresenta sintomas, algo que também tem seu lado ruim. Por isso, muitos portadores não são postos em isolamento, contribuindo para a difusão do vírus sem darem por isso.

Todas as estatísticas que temos a respeito da pandemia devem levar em conta uma probabilidade apreciável de subnotificação: o número de infectados é plausivelmente mais alto. Ainda assim, elas nos revelam um desenvolvimento exponencial consistente de novos casos e de mortes. O que poderá acontecer no Brasil está bastante bem delineado pelas experiências chinesa e italiana — isso, claro, se medidas corajosas e inteligentes não forem tomadas a tempo. Até agora, não é o que temos visto.

Em cerca de 5% dos acometidos pelo novo coronavírus, a síndrome respiratória tem apresentado uma evolução bastante grave, demandando cuidados intensivos, com equipamentos de ventilação mecânica. E aqui estamos diante de um drama potencial para o sistema de saúde de qualquer país: uma doença de dinâmica desconhecida e razoavelmente contagiosa geraria um peso extra sobre os leitos de UTI disponíveis, podendo exceder a “capacidade instalada” de algumas localidades.

O maior desafio colocado pela pandemia de COVID-19, portanto, não tem a ver com o bem-estar individual de cada um de nós — em especial os que têm pouca idade e sistema imunológico saudável — , mas com o impacto coletivo da doença.

As providências que vêm sendo adotadas em vários países do mundo têm por objetivo “achatar” a curva de contaminação pelo novo coronavírus e diminuir o peso das internações, que podem chegar a três semanas nos casos mais graves, sobre o sistema de saúde. Nesse sentido, o isolamento é um sacrifício que nos incumbe a todos fazer em favor dos mais vulneráveis e dos profissionais — médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância, serventes — que lidarão, sob pressão imensa, com os infectados.

Se você não entendeu o que está em jogo porque é uma pessoa saudável, que não costuma vergar-se com uma gripe ou resfriado, já passou da hora de rever seus conceitos. A pandemia nos desafia menos enquanto “entidades biológicas” do que enquanto cidadãos, dotados de direitos e deveres. Se os corpos da maioria de nós têm imunidade suficiente para vencer esta mutação do vírus em poucos dias, o mesmo não se pode dizer do padrão de civilidade em que vivemos: neste ponto, tudo é frágil e passível de deteriorar-se com rapidez. E ressalto: estamos falando desta mutação do vírus, o qual pode tornar-se mais agressivo de uma hora para outra.

Quanto às consequências econômicas da pandemia e do que tem sido feito de drástico para combatê-la, esta é uma vaca que já foi para o brejo. A tais alturas, a recessão já é inevitável. Caso todos venham a cumprir com sua parte logo, a economia mundial se reporá nos trilhos em poucos meses. Como uma cirurgia que precisa ser feita o mais breve possível, adiar as medidas de prevenção só piorará a situação e retardará a recuperação.

Mas estou cético com relação a tudo o que tenho visto — ao menos no Brasil. Há ainda muita resistência por parte de pessoas que se refugiam em modalidades de pensamento mágico ou que não querem abrir mão de certos confortos cotidianos: “não vai acontecer comigo nem com ninguém que conheço”, é o que dizem no fundo de si.

Bem, estatisticamente é difícil que aconteça, claro, mas as consequências são para todos. Um colapso do sistema de saúde terá impacto sobre saudáveis e não saudáveis, gente com positividade e gente sem ela. E o SUS opera, desde já, com ocupação de 95% nos leitos de UTI para adultos.

Apenas imagine, então, o que poderá suceder quando o vírus chegar a Francisco Morato, a Belford Roxo, a Jaboatão dos Guararapes e outras cidades populosas com saneamento básico e condições de moradia precários.

“Nenhum homem é uma ilha na inteireza de si”, escreveu John Donne, “cada homem é uma parte do continente, do geral”. E mais: “toda morte de homem me diminui, porque estou envolvido na humanidade” (No man is an Iland, intire of itselfe; every man/is a peece of the Continent, a part of the maine… any mans death diminishes me,/because I am involved in Mankinde).

Em dez dias, ninguém mais poderá se enganar quanto à gravidade do problema.

— Infelizmente — arremata a Cassandra que, à revelia, vive em mim.

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