Divagações de um confinado

Donato S. Ferrara
5 min readApr 6, 2020
Photo by Isaac Quesada on Unsplash

Neste preciso momento, boa parte da população mundial está confinada em domicílio. Com ou sem estímulo do governo, bilhões de pessoas, nos cinco continentes, têm evitado sair de casa para frear o avanço da COVID-19.

Não sou exceção: minha família e eu nos isolamos desde o dia 18 de março último. Só tenho posto o nariz para fora em idas ao mercado, ao banco, ao pet shop, ao local de coleta de recicláveis.

Nem todos têm seguido essas regras tão à risca. Se meu ponto de observação é representativo, vejo sexagenários particularmente recalcitrantes, não dando dispensa às diaristas que lhes prestam serviço em casa ou continuando com certa rotina de visitas. Amigos meus, de outras regiões de São Paulo, relatam que o movimento de carros e pessoas vem se normalizando nos últimos dias, ainda que com discrição. Em cidades litorâneas, as praias continuam com frequência considerável nos finais de semana.

Fala-se de “quarentena”, mas o que se impôs em boa porção do Brasil é algo bastante mais brando. Não estamos na situação da Espanha, em que há forças militarizadas nas ruas e multa de € 600 para os que saírem de casa sem apresentar motivo convincente.

Há talvez um componente de classe na modalidade de distanciamento social que temos praticado nas últimas semanas. Para a classe média escolarizada, ficar em casa em regime 24 por 7 é uma opção certamente mais factível do que para os extratos da sociedade que vivem au jour le jour, com renda diária que varia ao sabor das circunstâncias. E as circunstâncias não têm sido as mais fáceis: a falta da merenda escolar, servida em todo dia letivo, empobreceu a dieta das crianças de comunidades carentes, apenas para citar um exemplo.

Os números do surto no Brasil são ainda modestos quando comparados aos de outros países: cerca de 11.200 casos registrados, com 489 mortes. Pode parecer “pouco” diante do sacrifício que muitos de nós temos feito: uma gota no oceano de quase 210 milhões de pessoas. Porém, quando nos atemos ao fato de que, quarenta dias atrás, havia somente um infectado perambulando por aqui e que a primeira morte se registrou há vinte, vemos quão rápida é a evolução da doença, mesmo sob semiquarentena.

Para ilustrar o que poderíamos estar vivendo sem as medidas de contenção propostas pelo Ministério da Saúde, outros fatos podem ser aduzidos. Países cujo governo e população demoraram a entender o que se passava nos oferecem um quadro comparativo mais dramático. Vejamos:

  • Os dois primeiros casos de transmissão local no Brasil são de 5 de março, um mês atrás, quando os confirmados somavam apenas 8.
  • Na data em que se registrou a primeira provável contaminação autóctone (26/02), os EUA tinham 54 contagiados (a maioria de “resgatados” da China, em isolamento), nenhuma morte; trinta dias depois (27/03), eram 104.126 infectados, 1.695 vítimas fatais.
  • Na Itália, depois de alguns cidadãos “resgatados” de Wuhan e contaminações isoladas (2 chineses em Roma), houve, em 21 de fevereiro, a notificação abrupta de 16 casos, sendo 14 na Lombardia e 2 no Vêneto. Após trinta dias (22/03), o país inteiro já contava com 59.138 contaminados, com 5.476 mortes.
  • Também é do dia 26 de fevereiro a primeira transmissão plausível por COVID-19 no território espanhol: um sevilhano de 62 anos. De pouco mais de uma dezena de infectados, o país ibérico passou a 65.719 positivos, com 5.138 baixas, trinta dias depois.

Com a difusão pandêmica, as estatísticas da China se provaram insustentáveis: são pouco críveis as cifras de mais de 81.000 infectados, dos quais 3.331 vieram a perecer. A falsificação chinesa induziu o planeta inteiro a subestimar a capacidade de contágio do novo coronavírus. Em consulta a cientistas e oficiais, o premiê britânico, Boris Johnson, foi informado de que os números da China podem ter sido minorados em até 40 vezes. Conclusões semelhantes foram endereçadas a Donald Trump, em relatório confidencial da inteligência norte-americana.

Nas democracias maduras, os problemas de notificação têm a ver com metodologia ou disponibilidade técnica, não com a intenção deliberada dos governos de mentir à população a fim de mostrar-se mais competentes. Podem, inclusive, ser discutidos pelo público não especializado, visto que o interesse geral está em jogo.

Quando esta crise passar, seria recomendável que os países que valorizam a transparência e os Direitos Humanos repensassem sua relação de dependência econômica frente a uma nação que despreza as condições dos trabalhadores e a verdade factual. Deixar grande parte da produção de insumos e equipamentos hospitalares em mãos chinesas é uma temeridade.

Mas a coisa não passa de quimera minha, evidentemente.

Assim, sabe-se que os números que apresentei de Estados Unidos, Itália e Espanha comportam falhas. Elas não advêm, contudo, da intromissão de uma arbitrariedade política. Em toda parte, a incerteza quanto aos números reais do vírus é muito grande, dados os portadores assintomáticos. Mas as estatísticas, quando coletadas com razoável seriedade, são alguma coisa.

Nos EUA, a testagem tem sido mais difundida — daí o número mais expressivo de casos. Também temos as peculiaridades de cada país. Na Itália, as características etárias da população, com 30% de idosos, tiveram um peso importante na alta letalidade. Ali e na Espanha, as rotas de turismo parecem ter tido um papel no espraiamento rápido do vírus, além da partida de futebol Atalanta x Valencia, disputada em Bérgamo no dia 16 de março — um verdadeiro Coronafest. Ademais, todos esses países estão saindo do inverno.

Também não podemos nos fiar completamente no levantamento brasileiro. Ao contrário: aqui a subnotificação tende a ser significativa. Para se ter uma noção, uns dias atrás, o Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, tinha 16 mil testes na fila, sem resultado. E muito verossimilmente há pessoas morrendo de COVID-19 que nem passam pelo radar de nossas autoridades sanitárias. Quantas seriam?

Com todos esses dados e ressalvas sob consideração, creio ser possível dizer que, ao que tudo indica e até este momento, a situação do coronavírus no Brasil não é das piores. A estas alturas, alguns países desenvolvidos já tinham milhares de mortos, o que ainda não nos sucedeu. Não se abateu sobre nós o temido colapso de nosso sistema de Saúde, algo que se observa em localidades como Guayaquil, no Equador.

Fatores como o calor tropical e certos hábitos comuns de nosso povo, como o banho diário (herança dos indígenas), têm decerto um impacto sobre esta situação, retardando a progressão do vírus. Até que ponto são coisas decisivas, não cabe a um leigo como eu responder. Porém, o fato de grande parte da população brasileira estar isolada em casa há quinze ou vinte dias tem, por razão mais forte, muito mais a ver com o panorama evolutivo que estamos observando.

Tudo pode mudar, entretanto. As notícias que me chegam de um afrouxamento informal da quarentena não são bons sinais. O comportamento do presidente da República, opondo-se aos critérios determinados por seu próprio Ministério da Saúde e incentivando pequenas e grandes aglomerações em seu apoio, transmite “sinais trocados” ao povo. Mesmo isolado dentro de sua própria estrutura de poder e no ponto mais baixo de sua popularidade (merecidamente), ao menos em tese lhe seria possível tomar a liderança de um grande esforço nacional pelo enfrentamento da pandemia — a qual atingirá seu pico nas próximas semanas —, e não reduzir-se a uma espécie de ombudsman ultraideológico do próprio governo.

Outra clara quimera de minha parte: Bolsonaro politizou a crise e agora está sendo atropelado pelos fatos, que são inexoráveis.

Daqui a vinte dias, se a Fortuna quiser, publico mais um texto a respeito desta crise. Como estaremos lá?

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