O ocaso de Olavo de Carvalho e os limites das convicções

Donato S. Ferrara
8 min readJul 10, 2021
Photo by Shashank Sahay on Unsplash

Como falaremos de um ícone da direita brasileira, começarei aludindo a um questionamento de Louis Veuillot (1813–1883) com o qual me deparei, anos atrás. Naquela época, eu tinha o hábito de ler os escritores mais radicais que encontrasse, inclusive os ultrarreacionários.

Em algum ponto de suas obras, aquele grande defensor do catolicismo atuante na política — uma das inspirações para o Monsenhor Lefebvre (1905–1991) e para a fundação da TFP (1960) — perguntava-se se um ateu que ficasse muito doente seria capaz de negar-se a ser levado a um hospital religioso ou a ser atendido por freiras enfermeiras, em nome da coerência. Demonstraria ele a repulsa que sempre o caracterizou pelo cristianismo se seu bem-estar ou sua vida estivesse em jogo?

É um questionamento pertinente. Acredito que os ateus, em sua maioria, não se furtariam à compaixão de cristãos que os assistissem em seus momentos de dor. Alguns deles, suponho, talvez viessem a mudar de opinião sobre Deus, a crença e os crentes, atravessado o período mais difícil.

Veuillot escrevia em um século em que as instituições de saúde eram mantidas pelas igrejas (e é por isso que até hoje são identificadas com uma cruz, no Ocidente e na América Latina). Atualmente hospitais e clínicas fazem parte do mundo leigo. Não é raro, portanto, que certos dilemas éticos decorrentes do avanço da tecnologia no âmbito da medicina também toquem a esfera do que as religiões julgam lícito ou ilícito.

Podemos nos indagar, com igual pertinência, se um protestante devoto deveria recusar-se a ser tratado por um médico que fosse publicamente antirreligioso. Ou se uma católica fervorosa não deveria aceitar a proposta de interromper uma gravidez de risco — digamos, uma gestação ectópica em uma das trompas —, apesar da conhecida proibição do aborto pelo Vaticano.

Questionamentos semelhantes não dizem respeito somente à religião, muito menos à religião cristã. Será que um vegano deveria pôr em risco sua vida e a de seus semelhantes em meio a uma pandemia, recusando-se a tomar uma vacina desenvolvida com o auxílio de ovos de galinha? Seria mesmo um ato altamente ético o de outro indivíduo, que negasse uma vacina provida pelo Estado pelo mero temor de aumento de controle daqueles que detêm o poder?

Deveria um muçulmano impedir que um filho doente fosse tratado por uma equipe médica formada por judeus? Estaria mesmo cumprindo a vontade de Deus um adepto das Testemunhas de Jeová que vetasse à sua filha a transfusão de sangue no caso de uma enfermidade curável?

Em suma, até que ponto valeria a pena sustentar uma coisa em larga medida abstrata como uma convicção — seja religiosa, seja ética, seja política — em face de algo bastante concreto como o sofrimento — nosso e dos outros?

E aqui entra uma atualidade: as últimas notícias sobre o escritor Olavo de Carvalho.

Olavo vive nos Estados Unidos desde 2005. Foi uma das vozes mais atuantes na oposição aos governos Lula e Dilma, além de um dos responsáveis pelas ideias que passaram a nortear parcela considerável da direita no Brasil. A ele deve-se, principalmente, a circulação da tese de que o Foro de São Paulo, entidade que congrega partidos progressistas/socialistas latino-americanos, seria um ente que traça estratégias para a hegemonia da esquerda nesta porção do continente. Com Bolsonaro, tornou-se uma espécie de mentor para os filhos do presidente e alas do governo.

Não entro no mérito das teses de Olavo de Carvalho. O que me interessa é registrar seu comportamento geral nos últimos anos, expondo a incongruência que existe entre declarar-se um homem de cultura e promover tantas formas de desrespeito aos outros. Cultura é, desde sempre, cultivo de si, trabalho sobre si mesmo. Cultura animi philosophia est (“a filosofia é o cultivo da alma”), como escreveu Cícero, nas Tusculanas.

Uma pessoa de cultura, ao debruçar-se sobre suas próprias convicções, talvez devesse relativizá-las, perceber o que pode haver nelas de circunstancial e contingente, abrindo-se para outras possibilidades. A dúvida e a empatia caminhariam, assim, juntas. Se a cultura não estimula essas coisas, não passa de um penduricalho do ego: não tem utilidade nenhuma.

Por mais de quinze anos, indivíduos que não concordassem com Olavo foram tachados de “analfabetos funcionais”, “idiotas”, emanações do “imbecil coletivo”. As universidades brasileiras foram descritas como pontos de tráfico de drogas ou simples repetidoras de ideologias assassinas. Haveria uma conspiração global, urdida por uma “elite iluminada”, para acabar com os Estados Unidos, o Estado de Israel e a Igreja Católica Apostólica Romana.

Toda a cultura brasileira das últimas décadas era, para Olavo, lixo e irrelevância, dado que unicamente inspirada pelo que ele entendia como marxismo cultural. O Brasil seria “o país mais burro e assassino do mundo”. Por causa disso, não existiria ninguém, nestas terras, capaz de manter com o grande Olavo uma discussão de uma hora sobre um tema importante. Palavras dele mesmo, é claro.

Com suas generalizações e xingamentos, ele ensinou seu público a exibir desprezo por muitas coisas antes de tentar compreendê-las, contentando-se com a imitação do temperamento vitriólico do mestre.

Vários de seus seguidores reconheciam-se no slogan “Olavo tem razão”. Se é Olavo quem tem a razão, torna-se desnecessário ao sujeito que o escuta tê-la; torna-se sem serventia raciocinar por conta própria. A clarividência política se dá por procuração: aqui, estamos a léguas de distância da cultura animi de Cícero e muito mais próximos da subserviência sectária. Pouco importa que o pensador em questão insinue que não haja provas de que a Terra seja esférica, ou que ninguém tenha morrido de Covid-19, ou que Galileu e Newton tenham sido charlatães, ou que a Pepsi fabrique adoçante com células de fetos abortados: ele sempre tem razão!

Enquanto desfiava as contas de seu rosário de sabedoria, entre vitupérios e evocações anais, Olavo se mantinha estrategicamente ao abrigo de problemas com a Justiça, vivendo em país estrangeiro. Baseado na Virgínia, ele mostrava com orgulho o armamento que ali pôde adquirir legalmente e exaltava as vantagens do capitalismo norte-americano, menos paternalista e bem mais desenvolvido que sua acanhada versão tupiniquim.

O estado de saúde de Olavo de Carvalho deteriorou-se a pigarros vistos ao longo dos anos. Em 2018, por causa de um cisto na traqueia, foi submetido a uma cirurgia. No começo de 2020, passou dias internado, com infecção urinária e respiratória. Ficaram para ele, desses períodos no hospital, contas bastante altas — e em dólar. Felizmente, com a ajuda de admiradores, ele conseguiu promover vaquinhas para a quitação dessas dívidas.

Olavo disse muitas coisas feias e injustas sobre o Brasil, país no qual a maior parte de seus alunos reside e trabalha, pagando-lhe por seus livros e cursos. Agora ele está de volta à terra natal, para ser tratado no InCor, hospital administrado pela Faculdade de Medicina da USP. E isso, pelo Sistema Único de Saúde. Há quem tenha estranhado a rapidez com que deu entrada em um hospital de ponta, algo que só é possível ao paciente comum quando ele se dirige primeiro a um posto de saúde e se submete a certos trâmites. Se existe a suspeita de que a fila do SUS foi furada, há que instalar uma sindicância.

Não foram poucas as vezes em que Olavo papagueou conservadores norte-americanos, que viam em propostas de plano de saúde universal, como o Obamacare, uma afronta a liberdades individuais. Hoje, ele pôde sobreviver ao fazer uso do SUS. Desejo-lhe plena e pronta recuperação.

Suas convicções, sejam elas quais forem, acabaram sendo menos determinantes para sua decisão do que o sofrimento por que passava. É bastante possível que Olavo tenha “ficado mal na foto” ao retornar ao Brasil para obter aqui, gratuitamente, o tratamento que lhe teria custado uma fortuna no país que ele escolheu para morar. Paciência: é ele quem terá de viver com isso.

Não me parece, além do mais, que seja indício claro de conservadorismo o fato de uma sociedade não procurar dar assistência médica gratuita a todos, nem que seja um sinal inconteste de socialismo a existência de um NHS britânico ou de um SUS brasileiro. As palavras e os conceitos, nesse caso, estão sendo mal empregados, para dizer o mínimo.

De todo modo, o episódio o levou a reconhecer sua própria vulnerabilidade, o que é sempre bom, apesar da dor. E também nos faz notar as vantagens de um modelo de sociedade como o brasileiro, apesar de nossas mazelas e da mania de vermos só o que há de ruim por aqui.

Seria muito tentador apontar-lhe o dedo e acusá-lo de hipocrisia, embora eu não consiga dizer se Olavo é propriamente um ὑποκριτής (hupokritḗs) — i.e., um ator ou pessoa que age com dissimulação.

Parece-me que isso de ficar procurando hipocrisia nos outros é um cacoete em voga nas sociedades ocidentais e ocidentalizadas, que não saneia o debate público. O mundo vira uma espécie de gigantesca Versalhes em que o que importa é pilhar alguém em flagrante delito de hipocrisia: as redes sociais vibram com isso. Em vez de se combater o ato, vai-se na direção do caráter da pessoa.

Em última análise, só é possível corrigir a hipocrisia de si próprio. A obsessão com a hipocrisia alheia é uma corruptela da cena de Jesus expulsando os vendilhões do templo. Curiosamente, essa faceta de Jesus parece ser a única que a nossa época, de maneira quase unânime, aprecia.

Olavo diz-se cristão. Pode ser. Jesus afirmou que deveríamos amar nossos inimigos. É muito, muito difícil. Antes dele, porém, os pagãos já desenvolviam a medicina, na qual é necessário prestar socorro a toda e qualquer pessoa, sem distinção.

Toda e qualquer pessoa: porque, diante do sofrimento, todo ser humano é um macaquinho assustado. Olavo, você e eu estamos irmanados nessa condição.

Ao menos na política, não é preciso sofrer para observar os limites de suas próprias convicções. Se você tende à direita, considere como foi vital, nesta pandemia, a atuação dos Estados, quer na prestação de socorro às vítimas, quer no financiamento às vacinas, quer nos programas de imunização. Se você tende à esquerda, veja como foram importantes as ferramentas fornecidas sem custo por gigantes da tecnologia na manutenção de muitos empregos em home office, como os serviços de entrega só puderam ser conservados por causa dos aplicativos, como a pesquisa e a fabricação de vacinas foram empreendidas pela iniciativa privada.

Contemplar o ponto em que nossas próprias convicções deixam de fazer tanto sentido pode ser um exercício humilhante, porém é essencial. É o orgulho que nos aferra a posições inamovíveis e à convicção de que estamos certos na maior parte do tempo. É ele que deve ser combatido.

Um esquema mental que parece explicar a realidade não é a realidade mesma, assim como o mapa não é o território.

Mas você também pode, é claro, sair por aí praguejando, acreditando que todos os que pensem de modo diferente sejam analfabetos funcionais ou canalhas — e mandá-los tomar naquele lugar pouco arejado.

A escolha é sua.

--

--